“Burundangas: banalidades, trabalho e
subversão”
A exposição “Burundangas:
banalidades, trabalho e subversão” carrega esse nome pela simbologia
presente nos objetos selecionados. A escolha da palavra “burundanga” faz
referência a um conceito usado para se referir às coisas vistas como “sem valor
para a sociedade'', podendo até ser descrita como “confusão” pelo dialeto
africano. Nesse sentido, nossa proposta é levar o público a refletir como, em
uma sociedade mediada pelo capital, os objetos mais banais carregam caráter de
classe e guardam memórias de trabalho que são importantes para a identificação
de uma história em torno de um objeto. No entanto, o foco não é no objeto em si
e muito menos no modo de realização do trabalho, mas nas memórias cativadas por
indivíduos que apresentam, com nostalgia e emoção, suas trajetórias e maneiras
de viver que fogem da esfera do poder e se realizam na subjetividade, podendo
ser consideradas “banais” para o olhar colonizado.
O museu por muito tempo trouxe, na sua genealogia, a
reprodução dos modos de vida e organização de grupos detentores do poder e, por
meio da abrangência dos objetos cotidianos nas exposições, podemos disputar a
narrativa em torno dos museus e apresentar as demais particularidades como
possíveis de representação. Nesse sentido, tal disputa deve ocorrer a partir
das pessoas e comunidades que se relacionam diretamente com os objetos
expostos, tendo em vista que são suas memórias e subjetividades que estão ali
representadas. Além disso, objetiva-se romper com a hierarquia existente nesses
espaços, uma vez que a experiência individual não pode ser totalmente
compreendida e compartilhada “sob a luz” de uma narrativa externa ao indivíduo.
Ao falar-se de museus e exposições há, assim como na
historiografia, produção de memórias e esquecimentos que resultam das seleções
ali feitas. Dessa maneira, pode-se chamar tal produção de “narrativa”, uma vez
que a narrativa se dá no discurso que apresenta uma parcela da realidade e cria
pontes entre a realidade e o imaginário social.
Assim, como debatido no tópico dedicado aos objetivos da
exposição, os museus por anos carregaram na sua estrutura uma narrativa
colonial e de dominação, ou seja, contaram as memórias e particularidades
sociais tendo um enfoque na classe detentora do poder. Ademais, a contestação
desse modelo colonial só passou a ser problematizado quando a “alternativa” se
torna importante pro comércio.
Desse modo, tratar de uma alternativa de representação da
memória que não esteja voltada para o mercado e que seja construída pelo povo e
para o povo é importante para que a descolonização carregue, para além das
problematizações culturais, um caráter de representação de classe. Portanto, a
narrativa montada pela exposição carrega relações de trabalho e vivência
cotidiana que revelam particularidades e experiências que não se concentram na
posse fetichizada que o capital impulsiona.
Nesse ínterim, pode-se afirmar que a narrativa carregada
pela exposição é descolonial e de classe.
OBJETOS DA EXPOSIÇÃO:
A máquina de datilografia, pertenceu à professora Maria José Pinto da costa, que também era diretora da escola de datilografia Neudson, registrada pela prefeitura de Fortaleza. O espaço ficava localizado na avenida Visconde de Pelotas N°13, em frente ao mercado dos piões-Fortaleza CE.
Com seu trabalho, dona Maria José foi capaz de criar seus 5 filhos que, com gratidão, honram à mãe pela educação recebida e por terem tido a oportunidade de alcançar a formação acadêmica. Assim, a professora Maria José também contribuiu através de suas aulas para a formação de vários profissionais das mais diversas áreas.
Infelizmente, nenhum de seus filhos deram continuidade à escola, que teve por fim seu fechamento. Com isso, a cunhada Luiza Marilac da Costa adquiriu a máquina datilográfica (que está sob seus cuidados até os dias atuais), e a mantém como um símbolo de grandes memórias e curiosidades para suas visitas.
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(Diploma de um dos filhos de Maria José, formado no curso) |
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(Maria José, diretora da escola) |
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(Cangalha e cambito) |
A imagem mostra dois objetos antigos que são utilizados em conjunto, são eles a cangalha e o cambito. São objetos utilizados para auxiliar na vivência de trabalhadores rurais, levando maior facilidade na renda, alimentação, comércio, etc. Esses objetos serviam para carregar coisas, como a maniva, estacas, lenhas, que são coisas usadas no dia a dia dos trabalhadores rurais. Servia como uma maneira mais fácil de realizar as atividades, e como antes não havia caminho, apenas o que é conhecido como varedas, que é um tipo de caminho mais estreito, era mais propício o uso da cangalha e o cambito; uma vez que, não tinha espaço e nem outros meios como mais a frente veio surgir a carroça. Esses objetos eram usados em um animal, geralmente o burro ou jumento. Assim, com esse auxílio, que ajudava muito a mão de obra humana, eram feitos os roçados, para se fazer plantios, as farinhadas, coisas nesse sentido, que estão ligadas com os feitos dos trabalhadores rurais.
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(Monóculos da família Veiga) |
Em caixas de sapatos, no fundo de gavetas, dentro de baús... Ele cabe em qualquer lugar.
O monóculo de fotografia talvez seja um velho conhecido dos seus avós, tios, pais ou pode até
mesmo ter feito parte de sua infância. De formato cônico e medindo poucos centímetros, esse
objeto nostálgico cabe na palma da mão, mas não se engane: por menor e mais singelo que seja,
o monóculo possui valor inestimável para algumas pessoas, principalmente aquelas que
viveram em um período onde a fotografia digital era inexistente. A possibilidade de guardar
pequenos fragmentos de memória em um objeto acessível de qualquer lugar, tornou-se um
“luxo” cobiçado e largamente utilizado, principalmente entre as décadas de 60 a 80. Serviam
para registrar viagens, passeios, espetáculos de circo ou mesmo cenas cotidianas, vivenciadas
por famílias de todo o país. Os fotogramas eram revelados em cromo numa película
semitransparente, que ao serem encaixados numa tampinha branca, permitiam a passagem da
luz e assim, era possível enxergar uma pequena fotografia ao posicionar o olho na lente de
aumento presente na outra extremidade. Até hoje é possível encontrá-los, mas não com a mesma
frequência que no passado. Atualmente costumam ser utilizados como chaveiros e
lembrancinhas de festas.
Na foto, há dois exemplares de modelo antigo que pertenceram a Francisco José Veiga.
Ele residiu boa parte de sua vida em Amanaiara (distrito de Reriutaba-CE), onde trabalhou por
anos como agricultor. Ainda bem jovem, viajou para o Rio de Janeiro, onde morou por muito
tempo e trabalhou como cozinheiro. Como é possível constatar, a qualidade das fotografias não
é das melhores, mas o encanto e simbolismo dos monóculos nunca se perderam e os fizeram
ultrapassar várias gerações da família Veiga, que até hoje guarda alguns desses objetos com
nostalgia. Meu pai (presente em ambas as fotos) costumava contar muitas histórias sobre sua
infância, juventude e sobre a nossa família no geral – apenas por meio dessas histórias, que
conheci meus avós e também por meio delas que soube da existência dos monóculos. Esses da
imagem ilustram um contexto em que as famosas calças “boca de sino” e os longos cabelos
masculinos eram uma febre, como ele mesmo costumava falar. Além dele, minha tia (também
já falecida) guardava muitos monóculos de fotos de familiares, que depois passaram a aparecer
mais nos álbuns de fotografias até chegar nas imagens digitais. Ainda assim, lembro-me que no
tempo áureo da infância chegava a ser mágico ficar diante de tantos monóculos e contemplar
com expectativa a imagem escondida dentro de cada um deles. Esse é certamente um dos
objetos mais emblemáticos dos quais me lembro ter ouvido falar e considero um privilégio
sublime a possibilidade de ver, ainda nos dias de hoje, semblantes e rostos conhecidos (ou não)
há tanto tempo congelados e emoldurados para sempre atrás de uma lente, que apesar de
minúscula, é carregada de significados. Por fim, e como muito bem enunciou o jornalista e
escritor Caio Fernando Abreu, “Como doem as perdas para sempre perdidas, e, portanto,
irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos”.
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(Máquina de cortar cabelo)
A máquina de cortar
cabelo foi inventada por Nikola Bizumic no século 19, esse é um dos
modelos que foram produzidos, tendo como primeiro dono o Sr. Paulo José, ele
era bisavó de Maicon. Paulo começou utilizar a máquina no fim da década de 50, tinha
bastante apreço pelo objeto, visto que na época boa parte dos barbeiros
convencionais utilizavam apenas a tesoura. Paulo morava em Várzea Alegre, vinha
de origens humildes, seus pais eram agricultores, foi como barbeiro que ele
tirou o sustento de seu lar, trabalhava atendendo todas as classes sociais,
costumava ir para zona urbana atrás de novos clientes. Com o passar do tempo
mais barbeiros foram aderindo o corte com essa máquina, se tornando algo mais
popular, mas ele a utilizou por cerca de 40 anos, parando de usar completamente
perto dos anos 2000, pois já era um senhor de idade. Toda a história que vocês acabaram
de ler me foi repassada pelo Sr. Naldo Moreira, que trabalha como barbeiro há 7
anos, sendo essa uma das principais fontes de renda da sua família, ele é o
atual dono dessa relíquia, ganhou a máquina do seu cliente Maicon (bisneto de
Paulo), o objeto é exposto em um quadro na barbearia “Seu estilo” juntamente
com outras peças do pequeno acervo histórico do Sr. Naldo.
Atualmente parece que os produtos
dessa geração são feitos para rapidamente serem descartados, normalmente quando
algo está velho logo se diz “Joga fora isso, ninguém nem usa mais”, se algum
dos parentes do Sr. Paulo tivessem seguido isso, provavelmente essa relíquia
teria sido destruída. Não apenas o Naldo gostava de colecionar objetos, como
sua mãe Adelaide também, já a filha da mesma não gostava tanto assim desse
hábito, então em qualquer oportunidade tentava jogar fora os itens que ela
denominava como “velhos”. Dona Adelaide com seu fino humor costumava dizer aos
amigos e parentes “Se um dia vocês verem um saco preto grande na calçada, podem
correr para abrir, foi minha filha que me jogou fora por estar velha demais”. |
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(Selfie de Naldo Brito, atual dono da máquina de cortar cabelo.)
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(Canivete do Orlando Mendes.)
Canivete adquirido por Antônio Orlando dos Santos Ramos (44) a pelos menos 25 anos atrás. Objeto que acompanhou parte significativa de sua juventude, enquanto morador da zona rural de Viçosa do Ceará, e trabalhador rural explorado desde os 9 anos de idade pela condição estrutural de pobreza e fome que o sobrecarregou com a responsabilidade de não deixar a mãe e os irmãos morrerem de fome. Sofrimento atenuado através de pequenas coisas, como a própria compra desse canivete, os jogos de futebol aos sábados e a certeza de longas conversas com os amigos enquanto descascava laranjas com a ainda afiada lâmina da faca, a sensação de defesa ao frequentar festas em locais desconhecidos com a certeza de poder zelar pela própria vida com o canivete no bolso, em um espaço social marcado pelo simbolismo da arma branca enquanto instrumento de trabalho e meio que imbuía de certa potência o trabalhador, ainda que a lâmina desse canivete nunca tenha sido manchada com sangue humano. Após o casamento, filho e a mudança de cidade, o canivete ficou esquecido na gaveta de um velho armário até ser encontrado por uma criança de 6 anos que passou os seguintes 7 anos brincando de ninja e levando para a escola como um objeto exótico para impressionar os colegas, virando efetivamente um brinquedo proibido dado a sua letalidade, mas hoje sendo apenas mais uma “burundanga” no meu quarto. |
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Trabalho realizado por:
Nataniele dos Reis
Gomes
Ícaro Janderson
Linhares
Orlando Mendes Ramos
Izabel Jeane Vieira
Veiga
Carmen Soraya de Paula
dos Santos
Misa Gonçalves da
Silva